Me parece que foi lá em 1986, que um certo rapaz fazendo uma conversa paralela com seu amigo piloto recebe a intervenção do seu instrutor:
“Você acha que pode ser o melhor da sua turma?” – rompendo com o clima da aula diz o Instrutor. “Sim Senhor” responde o aluno, ao receber os olhares desafiadores dos demais participantes do curso. “Isso é bastante arrogante, considerando a companhia em que você está.” - Responde o instrutor referindo-se ao restante da classe que tem alunos selecionados entre os 1% melhores pilotos do país. “Sim, Senhor” - insiste o aluno. “Eu gosto disso em um piloto” confirma o Instrutor.
Eu preferia acreditar que foi assim que nós pilotos, inspirados nas cenas de Top Gun, passamos a ser arrogantes. Mas arrogância era algo presente desde muito antes disso, existente até hoje e garantida no futuro por uma cultura que comentarei aqui.
Para que eu não pense sozinho, a ideia é a seguinte: será que a forma como desenvolvemos profissionais, defendemos nosso setor e a cultura cotidiana que temos está produzindo o futuro que sonhamos para a aviação?
Nos últimos 15 anos em que transformei a aviação na minha vida de sonho em carreira, convivi e trabalhei com muitos aviadores em formação básica e em treinamento nas linhas aéreas. Nesse processo, percebi que a arrogância – assim como as crises – respeitam um ciclo vicioso em nosso setor.
Ao ingressar na aviação, independente da sua origem e histórico, logo irá conhecer pessoas que vão procurar (se não criar) as condições para dizer que você pouco conhece sobre voar – ou sobre qualquer coisa, na verdade. Leva algum tempo até que o aluno, já profissional, perceba acontecer a mesma coisa de novo, de novo e de novo.
Há quase um século, é na humilhação ou na afronta que se estabelece um código de conduta que determina a proteção do mais antigo ou desses ideais.
A ideia aqui não é vitimizar os novatos, já que precisam agir de acordo pela questão da ética ou etiqueta. É educado, por exemplo, que aquele que adentra um ambiente, cumprimente os demais presentes primeiro. Observar, escutar antes de falar, e por aí vai…
Entretanto, parece que mesmo pagando o mais alto preço (vidas), nós aviadores ainda não aprendemos bem que fazer ouvir é muito diferente de fazer calar.
Se não quero vitimizar os novos, também não quero incriminar os antigos. Esses são provavelmente as verdadeiras vítimas. Jamais vão se deixar ser chamados assim calados é claro, já que têm orgulho exatamente por terem construído suas carreiras vitoriosamente em meio a um ambiente altamente hostil.
O que ocorre é que essas pessoas foram moldadas anteriormente a esse código de conduta por outros, que as expuseram ao ridículo, lhes fizeram desafios (realmente) impossíveis por injustiça, os submeteram a humilhações diversas e lhes privaram o acesso ao conhecimento para impedir que pudessem crescer. Quando não havia mais recursos para as fazerem submissas, recorriam ao tempo, já que isso não pode ser mudado. O apelido disso no código de conduta era algo como “horas de voo”, e a definição “tenho mais que você” era o julgamento final para a qualidade do aviador.
Não adiantou, muitos novos profissionais venceram, mas nem por isso puderam “aparecer” ou comemorar sua conquista sonoramente. Essa necessidade humana, é descrita nesse código de conduta provavelmente como “frescura dos millenials” ou ainda “pessoa que quer se exibir”.
Nessa vitória silenciosa, muita gente ainda tem as falas de Maverick presas dentro de si. Como vão poder dizer por aí que são, sim, muito bons?
Entra em ação o reinício do ciclo, o código de conduta agora aprendido, ganha as redes sociais nas palavras do novo mestre. Do conforto do nosso sofá em casa ou no D.O., com os dedos no celular podemos salvar aviões de graves acidentes, prever falhas mecânicas em sistemas altamente complexos (só com pouca leitura, mais para relembrar conceitos.. sabe como é né? a gente esquece…) e assim demonstrar nossa superioridade em cada comment que a gente posta!
Vamos corrigir o engenheiro arrogante, que se diz piloto, dizendo que pilotos: somos nós! Afinal ele certamente não conhece a diferença entre 360° e 180°. Vamos proteger o nosso setor da aviação dessa grande humilhação, humilhando a ele em sua arrogância egóica e tirana. Afinal ele aparece apenas no canal que ele mesmo criou!
Vamos também amedrontar o rapaz geek infantil e de fones azuis lhe mandando comments para que desista de entrar em nosso setor sendo tão arrogante. Vamos lhe dar ensinamentos sobre arrogância dizendo a ele que tire o uniforme de admirador e vista as berimbelas da submissão se quiser ter alguma chance conosco.
Vamos mostrar para alunos voando solo a primeira vez, que independente dos contextos ou da responsabilidade de sua instituição de ensino, não estamos aqui para perdoar, estamos aqui para ensinar manicacas arrogantes a não aparecer, afinal nem nós tivemos esse direito.
Ah sim, agora com isso pudemos nós, ser reconhecidos. Nós que tanto batalhamos e vencemos, transformamos apenas em memórias traumáticas nossos covardes instrutores do passado e agora ensinamos aos próximos suas lições do nosso jeito.
Percebe? Imagino que sim.
Deixo uma frase simples, de alguém bem mais inteligente do que eu, para explicar o que precisamos aprender com YouTubers, fazedores de memes, cartunistas, gamers do fone azul, com gente que produz conteúdo e com gente que não produz coisa nenhuma:
“O conhecimento serve para encantar as pessoas, não para humilhá-las.”
Mario Sérgio Cortella
Para quem já é de casa neste espaço…
Espero que um certo YouTuber não desanime de um dia tirar sua licença. Mas quando o fizer, ele certamente não será um Piloto Completo.
Eu não sou. Você também não é. Mas vamos todos tentar ser?
Nota do Autor
Os comentários foram desativados pois o objetivo principal é a autoreflexão.
Esse texto não é sobre um YouTuber, nem sobre todos os outros produtores de conteúdo aeronáutico, nem sobre influenciadores ou qualquer um que se arrisca a se expor para falar de aviação. Não é sobre as pessoas que estão abrindo as portas da aviação e inspirando mais gente a fazer parte do nosso setor.
Esse texto é sobre a forma arrogante em lidar com arrogância e com erro. Sobre a atitude de quem deveria educar com humildade. O texto é sobre transformar um ambiente de crítica e ego, em um ambiente de realização e colaboração. É sobre fazer isso não por que é bonito, mas porque é o caminho para a consistência e estabilidade do nosso setor. Para levar às telas informação positiva invés de apenas acidentes.
Afinal, se algo errado for aprendido nesse novo modelo de “educação nas mídias digitais”, o bom educador no ambiente certificado, poderá em suas palavras corrigir a proa, sem destruir os sonhos.